Durante muito tempo, a temática religiosa, onipresente na arte antiga italiana, impediu que eu a apreciasse devidamente. Nos museus e galerias, eu passava os olhos correndo pelas obras para evitar a sensação de crescente sufocamento. E as telas de Caravaggio em particular, intensas e algumas vezes até mesmo violentas, me botavam para correr.
Capela Contarelli na Igreja São Luís dos Franceses, em Roma, decorada com telas de Caravaggio ilustrando a vida de São Mateus. |
Mas lá estava eu imobilizada em minha surpresa diante de
cenas da vida de São Mateus pintadas por Caravaggio. Os personagens, tão vivos,
só faltaram saltar das telas ao serem iluminados repentinamente pelos holofotes
da capela Contarelli na Igreja de São Luís dos Franceses em Roma. Um contraste
com a penumbra do resto da igreja e com a tarde cinzenta e chuvosa lá fora.
"Vocazione di San Matteo", 1599-1600. |
"San Matteo e l'angelo", 1602. |
"Il Martirio di San Matteo", 1600-1601. |
Aquele seria o primeiro de uma série de "contatos” que eu teria com
Caravaggio e que me tornariam cada vez mais consciente e receptiva ao homem e ao artista que ele foi. Depois
de décadas sem ir à Itália, eu havia chegado a Roma mais cedo naquele dia de Novembro
de 2010, ano do 400º aniversário da morte do pintor, e galhardetes e cartazes
espalhavam-se pela cidade anunciando exposições e eventos sobre sua obra.
Francesca Cappelletti, expert no Barroco italiano. |
Dias depois, minha anfitriã convidou-me para ver uma exposição do
pintor renascentista alemão Cranach na Galeria Borghese acompanhada de sua
professora de história da arte, Francesca Cappelletti. Ela, eu vim saber mais tarde,
é uma das grandes especialistas atuais sobre a obra de Caravaggio.
O envolvimento de Francesca com Caravaggio começou quando ela, ainda
estudante, participou de um trabalho de catalogação das obras do artista
coordenado por um de seus professores. Mal sabia ela que isto iria leva-la a
ser uma das protagonistas da caça a uma famosa tela do pintor, “A Captura de
Cristo”, de 1602, perdida desde o final do século 18. Finalmente localizada na Irlanda na década de 90, a
tela é hoje a principal obra em exposição na National Gallery of Ireland, em
Dublin.
"The Lost Painting", de Jonathan Harr, foi publicado pela Random House em 2005. Em 2006, saíram as edições italiana e brasileira, respectivamente pela Rizzoli e pela Intrínseca. |
Verdadeira estória de detetive, ela acabou transformada em livro
best-seller, "The Lost Painting", de autoria do americano Jonathan Harr, publicado
em 2005. E foi justamente presenteando-me com a edição italiana do livro que minha anfitriã
despediu-se de mim ao final de minha temporada romana.
No Centro antigo de Roma, a Isola dei Mattei, quarteirão que nos séculos 16 e 17, reunia vários palazzi da poderosa família. |
Minha anfitriã vive em um apartamento num palazzo localizado na isola
dei Mattei, quarteirão no centro antigo de Roma que congrega vários palazzi
construídos entre os séculos 16 e 17 pelos Mattei, família então poderosa desde a Idade Média. O palazzo era a
residência de Ciriaco Mattei que, na virada do século 16 para o 17, era um dos
mais importantes colecionadores e mecenas das artes de Roma. Vestígios de sua
coleção de mármores antigos ainda podem ser vistos no pátio. Os dias passados ali foram
impregnados por suas estórias e as de sua família, a arquitetura de sua
residência refletindo uma personalidade visivelmente mais sóbria do que a do
irmão Asdrubale, dono do palazzo vizinho, para mim excessivamente decorado.
Qual não foi meu espanto então, ao finalmente ler “Il Caravaggio
Perduto”, descobrir que entre 1602 e 1605, patrocinado por Ciriaco, Caravaggio
morou em sua casa, instalado, justamente, no mesmo andar que eu! Neste período, ele pintou
várias telas por encomenda de seu patrono, inclusive o perdido e reencontrado
“A Captura de Cristo”. O tema do quadro lhe foi sugerido por outro irmão de
Ciriaco, o Cardeal Girolamo, que, sendo solteiro, também morava na casa de seu irmão mais velho.
Adicionalmente, essa estória adquiriu um viés brasileiro. Hoje, moram no
palazzo de Ciriaco, duas brasileiras casadas com italianos, uma delas, minha
anfitriã. No piano nobile, está instalada a magnífica residência de nossa
Embaixada junto ao Vaticano.
Livro de Francesca Cappelletti, "Caravaggio: un ritratto somigliante", publicado em Dezembro de 2009 pela Editora Mondadori Electa. |
Em Dezembro de 2009, Francesca lançou seu livro “Caravaggio: Un
ritratto somigliante”. Especializada no barroco italiano do qual Caravaggio é o expoente máximo, seu próximo livro será sobre os artistas do período – arquitetos, escultores e pintores – que construíram
e decoraram o Palazzo Pamphilj na Piazza Navona em Roma. O Palazzo Pamphilj abriga a
Embaixada brasileira na Itália.